15.1.23

Amigo velho

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não sei se você já conseguiu descobrir sozinha, então vou te ajudar. 

aquele que é aMigo de todos não é amigo de ninguém. 

mas é engraçado dizer isso, porque, pra mim, por um tempo você foi sim. em algum lugar das trincheiras profundas do ensino fundAmental, eu encontrei uma concha enorme e brilhante, uma ametista empoeirada. alguém pra chamar de espelho, alguém pra cantar comigo depois da aula, alguém pra dividir um pacote de bala. 

em algum lugar da chuva de meteoRos dos anos seguintes, eu descobri que era você atrás de alguns dos revólveres apontados pra mim. e tudo bem, a vida às vezes é assim, uma tampa de bueiro aberta no meio da calçada. brutus. não vamos entrar nesse mérito. 

onde você escondeu o amor que sentia por mIm pra dar lugar à raiva? eu escondi o meu nas costelas. se eu apertar um pouquinho mais forte, pensar na palavra certa, ainda sinto o cheiro de massa de bolo da nossa infância. mas assim que eu tiro a mão do segundo par de ossos, o hematoma volta renovado. eu só sinto o cheiro de fumaça. 

não quero te ver nunca mais. sinto sua fAlta toda semana. espero que você entenda; você costumava entender. tenho medo de um dia o rancor que eu sinto por você me cegar e eu bater o carro numa vitrine de loja. o ódio é uma forma de manter o vínculo, eu não ganho nada com isso, eu estou bebendo esse veneno sozinha; eu sei. sei de tudo isso. ninguém precisa me dizer. 

você sabia que eu não lembro de uma única piada interna nossa? eu não Lembro do que nós costumávamos rir de madrugada -- só lembro que ríamos. não lembro de como encontrávamos o caminho de volta uma pra outra depois de todos os nossos desentendimentos -- só lembro de encontrar. dessa vez a gente foi mUito longe na floresta.

eu não curto nenhuma das suas fotos. você também não curte as minhas, mas eu duvido que seja pela mesma razão. eu não "curto" a celebração de uma vIda sua da qual eu não tenho o direito de participar. eu só tenho a vida que eu tenho agora por culpa sua. inventar uma vida nova inteira pra mim sem você foi a coisa mais humilhante pela qual eu já passei, e eu me sinto humilhada diariamente. eu tive que descobrir tudo de novo. eu consigo traçar o caminho que vai de tudo que eu tenho agora de volta até você e a faca que deixou essa cicatriZ na minha escápula. é uma boa vida. é de verdade. eu criei com as minhas próprias mãos, tijolo por tijolo, só pra mim. mas tem um buraco no meio desse castelo que eu não deixo as pessoas verem. estou deixando agora. guardo atrás de umas quarenta portas. você consegue ver? é do formato do seu rosto. 

você pensa em mim também? eu às vezes passo perto da sua cAsa. eu ainda tenho muita indignação pela vida que você escolheu. as fotos, os tons de cabelo, as ruas, a mesmice. me dá dor de estômago te imaginar exatamente onde eu te deixei. eu sei que nada disso importa nem um pouco. você escolheu os solos inférteis, as cercas, as gaiolas. de alguns jeitos, eu também, mas as minhas são pelo menos diferentes das suas. 

eu não gosto da ideia de dividir waffles com mais ninguém. nunca encontrei outra pessoa pra andar comigo pelo museu. a memória da sua gentileza me faz querer chorar. você para e pensa sobre essas coisas? os segredos que a gente guardava dos outros. os refúgios que a gente encontrava uma na outra. você era a esperança que eu tinha de ter amizades de infância. eu sei. você ainda tem as suas.

eu acho que seus confortos são ilusões. eu escondi todas as nossas fotos. você é uma ferida aberta. eu ressinto todas as minhas ofertas de paz que você aceitou de mau grado. eu não sei quem é a maioria das pessoas com você nas fotos e detesto quem eu reconheço com cada fibra do meu corpo. eu não pretendo te mandar uma mensagem de feliz aniversário de novo. eu às vezes imagino nós duas jantando juntas, com a nossa idade de agora. eu fugiria de você se te visse na rua. eu ressinto o fato da sua política ter esfriado. eu guardo sua carta pra mim numa caixa bem do lado da minha cama. 

mais do que qualquer coisa, eu espero que tenha valido a pena.


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